Sobre NoirBLUE: deslocamentos de uma dança (Ana Pi, 2018), Nome de Batismo: Alice (Tila Chitunda, 2017), Maré (Amaranta Cesar, 2018) e Galinhas no Porto (Caioz e Luís Henrique Leal, 2018)
Tatiana Carvalho Costa com colaboração de Layla Braz
Texto originalmente escrito para o catálogo do forumdoc.bh.2018. Disponível em: https://www.forumdoc.org.br/catalogos/catalogo_forumdocbh_%202018.pdf
É preciso a imagem para recuperar a identidade. Tem-se que tornar-se visível. Porque o rosto de um é o reflexo do outro. O corpo de um é o reflexo do outro. E em cada um o reflexo de todos os corpos. A invisibilidade está na raiz da perda da identidade.
(Beatriz Nascimento)
A Mostra Contemporânea Brasileira traz alguns dos mais provocativos curtas-metragens realizados por diretores e sobretudo diretoras negras na atualidade. E a potência desses filmes se manifesta nas diversas formas de invenção de lugares de resistência e de pertencimento à negritude na linguagem e a partir dela.
Safira Moreira (Travessia, 2017), Tila Chitunda (Nome de Batismo: Alice, 2017) e Ana Pi (NoirBLUE: deslocamentos de uma dança, 2018) constroem narrativas que reinventam percursos da memória coletiva e criam outras possibilidades de existência como “autorreferencial sujeito do dizer” nas imagens, reafirmando, com o Cinema, a negritude positivada defendida por Aimé Césaire:
[A Negritude] é uma maneira de viver a história dentro da história, a história de uma comunidade cuja experiência parece, em verdade, singular, com suas deportações de populações, seus deslocamentos de homens de um continente a outro, suas lembranças distantes, seus restos de culturas assassinadas. […] busca de nossa identidade, afirmação do nosso direito à diferença, aviso dado a todos do reconhecimento desse direito e do respeito à nossa personalidade coletiva. (CÉSAIRE, 2010, p. 109-113)
Ampliando a ideia de “personalidade coletiva” e diversa, junto delas, Rubens Passaro (Universo Preto Paralelo, 2017) conecta as imagens da memória da escravização aos discursos sobre torturas no período da Ditadura Militar no Brasil, nos chamando atenção para a atualidade do fascismo e das imposições de uma necropolítica, enquanto Ulisses Arthur (Corpo Style Dance Machine, 2017) faz um exercício de rememoração de uma história recente de LGBTs, também sobrepondo temporalidades, para dar a ver particularidades da identidade negra e queer.
A exibição deste conjunto de filmes reverbera e amplifica uma crescente (ainda que insuficiente) presença de negras e negros no fazer do cinema brasileiro. Festivais, mostras e cineclubes ao longo deste ano se dedicaram mais ou menos intensamente a obras produzidas por esses (novos?) sujeitos, a reboque do que tem sido bravamente defendido há uma década pelo Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul e pelo CachoeiraDoc. Em Belo Horizonte, destacamos o FESTCURTASBH que, em sua 20ª edição e curadoria de Heitor Augusto, trouxe um apanhado amplo e diverso de obras realizadas por pessoas negras e promoveu um seminário que traçou o percurso da presença dessa filmografia na história do Cinema Brasileiro. Neste mesmo ano, o 50º Festival de Brasília recebeu o maior número de inscrições de filmes de negras e negros de sua história, um ano após a polêmica com Vazante (2017), e premiou o protagonismo negro atrás e à frente das câmeras. Em outros campos artísticos, a discussão sobre a representação e a representatividade da negritude também se intensifica. Em Minas Gerais, testemunhamos movimentos de aquilombamento artístico com a SegundaPRETA e a proeminência negra no Festival Internacional de Teatro – FITBH 2018. E São Paulo sediou, no MASP e no Instituto Tomie Ohtake, uma das mais importantes exposições de artes visuais sobre o tema na América Latina, a Histórias Afro-Atlânticas.
Cinema por e cinema com
Compreendemos e agimos em função da urgência na defesa de um lugar para o cinema feito por pessoas negras. Mas entendemos também que, neste momento histórico em que despontam fascismos, é importante olharmos para os gestos aliados – ainda que saibamos que “o aliado não é uma categoria estável”. Em parte dos filmes selecionados, há apontamentos acerca dos modos de fazer cinema com pessoas negras. Tomamos emprestado o termo “cinema com” da ensaísta e curadora Carla Maia, em sua definição do “caráter relacional das obras” feitas com mulheres:
Parece crucial na elaboração de um pensamento em torno de um cinema com, e não sobre: apostar na indeterminação, investir na aliança entre estética e política enquanto possibilidade de reinvenção de um campo sensível do qual os “sem-parte” podem, finalmente, tomar parte, numa redistribuição dos lugares de quem fala e quem é ouvido. O cinema – sobretudo o documentário, supomos – pode favorecer a criação de cenas dissensuais, e ao expor “situações de palavra”, permitir que a igualdade pressuposta entre os seres seja sempre colocada à prova, na medida em que confere visibilidade aos corpos e alcance às vozes daqueles/as que compõem a “parte que falta”.
(MARTINS, 2018, p. 169 – grifos da autora)
Em uma das sessões programadas para esta edição do forumdoc.bh2018, estão reunidas obras que trazem a potência da direção executada por pessoas negras – NoirBLUE: deslocamentos de uma dança (2018) e Nome de Batismo: Alice (2017) – e as possibilidades do diálogo deste cinema feito “com”, em gestos de escuta e co-criação executado por pessoas brancas – Maré (2018) e Galinhas no Porto (2018).

Apagamentos, reinvenções
“Não sei quando começamos a ter lembranças”. A primeira frase no voice over de Galinhas no Porto (2018), de Caioz e Luiz Henrique Leal, é acompanhada da imagem de uma paisagem com um mar ao fundo. A voz menciona as primeiras fotografias do século XIX e quem jamais pôde ser visto nelas. “Há galinhas no porto” era o código para a chegada de navios negreiros que desembarcavam ilegalmente na segunda metade do século XIX numa praia próxima à cidade de Recife. No final do século XX, a região virou um dos pontos turísticos mais desejados do país: Porto de Galinhas.
Fomos empurrados para o porão, totalmente nus, os homens foram amontoados de um lado e as mulheres de outro, o porão era tão baixo que não podíamos nos levantar éramos obrigados a nos agachar ou sentar no chão, dia e noite eram iguais para nós o sono sendo negado devido ao confinamento dos nossos corpos. Ficamos desesperados com o sofrimento e a fadiga. (LARA, 1988, p. 272)
O jovem Mahommah Gardo Baquaqua foi traficado para o Brasil nos anos 1840. Ao longo de sua vida, ele manteve diários que foram reunidos em uma publicação lançada no Brasil somente em 2017. O trecho acima é lido em um dos fragmentos de fala no filme. No espaço onde possivelmente Mahommah teria desembarcado, o presente do filme nos mostra uma sucessão de estátuas, brinquedos e souvenires em formas de galinhas. A câmera observa discretamente o homem negro que percorre a praia, a área de comércio e de ruínas onde ele delimita os possíveis espaços de confinamento de outros corpos negros em séculos anteriores. Ele se posta em meio a turistas em embarcações de visita às paisagens. Ao sobrepor digressões sobre a brutalidade da escravização de pessoas negras a esse movimento de um único corpo negro no presente daquele território desmemoriado, o filme restitui à paisagem a violência de seu passado. Um gesto de redenção?

A câmera em Galinhas no Porto observa. Em Maré, ela se torna cúmplice. Essa proximidade é potencializada pela construção de uma temporalidade que faz coexistirem a ação física dos corpos e uma camada do que age invisível sobre o espaço, sobre esses corpos e sobre o próprio tempo do e no filme.
Somos apresentadas ao mangue e a uma oferenda a uma senhora-tempo, entidade que o habita. Seria ela a força que o atravessa? Na lida com as castanhas de dendê, uma mãe tenta convencer as filhas a irem para o colégio. “Elas querem ir embora para Salvador”, pensa a mãe em voz alta. “Dizem que as escravidão já acabou. Quem disse que acabou? Continua aí. Não vê quem não quer”, afirma, a pilar as castanhas. Olhada de baixo para cima, a não-atriz e sua fala ganham a força das socadas no pilão. As irmãs Patrícia e Diguinha, uniformizadas, desviam-se do caminho e adentram o mangue. Entramos com elas. A mais velha ensina a mais nova sobre o trabalho e os humores do lugar: “então, você é a rainha do mangue”, ironiza Diguinha. Mas a mãe quer inventar uma nova vida para as filhas, diferente da vida que inventaram para ela.
As meninas parecem divididas entre a vontade de ir e um chamamento para a permanência. E elas não voltam para casa. Da janela, a mãe observa a ausência, recolhendo duas maritacas para junto de seu peito. A noite cai, a maré sobe. As forças agem no tempo, naquele espaço, e o filme se abre para elas, a compartilhar conosco imaginários e crenças. “Adeus, camarada, adeus, adeus que eu já vou m’embora, pelas ondas do mar eu vim, pras ondas do mar eu vo’mbora”. Acompanhamos a cantoria e um progressivo acender de lamparinas nas casas e nas ruas. “Ô, Iemanjá, ekô, ekô, Oxum obá”. Amaranta César é hábil na construção poética da procissão-resgate encenada pelas mulheres na bela paisagem da comunidade quilombola do Vale do Iguape. Na noite, senhora-tempo-mangue espera, fazendo fogo em seu cachimbo. “Diguinha, Diguinha”, ouvimos, enquanto vemos a menina a caminhar ao lado dela na luz do dia. Cantos de lamento marcam o retorno das mulheres, sem Diguinha, na manhã. Acompanhamos as personagens de perto. A câmera, cúmplice das não-atrizes, apresenta uma coerência com um processo do que já chamamos aqui de um “cinema com” (MARTINS, 2015). A fábula encenada faz aparecer na tela o desejo que vem do conjunto de mulheres que inventam o filme.

De observadora e cúmplice, a câmera assume o olhar de mulheres negras que buscam as imagens de si no território da memória ancestral. Nome de Batismo: Alice (2017) e NoirBLUE, deslocamentos de uma dança (2018) lidam, em primeira pessoa, com uma ideia de retorno ao continente africano. Nos dois, as diretoras-protagonistas Tila Chitunda e Ana Pi lidam, cada uma à sua maneira, com o não-lugar da interseção diaspórica nos corpos. Tila enfrenta as reverberações de uma migração decorrente da guerra pela independência de Angola nos anos 1960. Ana Pi lida com a secular passagem de um povo pela Porta do Não-Retorno.
A história de seu nome, Alice – dado em homenagem à sua avó –, é a razão encontrada por Tila para a ida a Angola. Nascida no Brasil e filha imigrantes, ela viaja com a mãe para a terra natal materna. Numa estrutura cronológica, o filme parte da decolagem para outro continente e nos leva, com a câmera-olho de Tila, pelo percurso às ruas, estradas, cidade e aldeia até a despedida para o retorno ao Brasil.
“Nossas visitas chegaram, lhes esperamos por muito tempo”, cantam os parentes. Apesar da calorosa acolhida, no caminho para Bié, território Ovimbundo de onde vem sua família, Tila se frustra ao tentar reconhecer o desejado pertencimento: “me sinto estrangeira neste lugar”, ela diz em voice over enquanto aponta a câmera para a paisagem que passa pela janela do carro. “É frustrante estar aqui e não compreender o que dizem os mais velhos”, ela afirma voltando seu olhar para os parentes que conversam em umbundo, dialeto do “local de nossas origens”. A câmera reafirma a presença dela naquele território mas encarna o olhar estrangeiro que observa, com curiosidade, uma terra distante. Ao não conseguir se encontrar com a África imaginada, Tila se decepciona e nos apresenta o paradoxo da construção identitária diaspórica: qual é, afinal, nosso afro-pertencimento?
Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos e “autenticidade’, pois há sempre algo no meio [between]. Não podemos retornar a uma unidade passada, pois só podemos conhecer o passado, a memória, o inconsciente através de seus efeitos, isto é, quando este é trazido para dentro da linguagem e de lá embarcamos numa (interminável) viagem. Diante da “floresta de signos” (Baudelaire), nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias (“relíquias secularizadas”, como Benjamim, o colecionador, as descreve) ao mesmo tempo em que enquadrinhamos a constelação cheia de tensão que se estende diante de nós, buscando a linguagem, o estilo, que vai dominar o movimento e dar-lhe forma. (HALL, 2003, p. 26-27 apud CHAMBERS, Iain, 1990. p. 104)
Longe de verdade buscada por Tila Chitunda, Ana Pi encara performaticamente a ideia de pertencimento. NoirBLUE é o azul de tão preto. A expressão racista é apropriada e positivada pelo percurso de Ana com seu manto azul e sua dança em ruas, calçadas e ruínas de países da África Subsaariana de onde, séculos passados, partiram milhões de pessoas pela Porta do Não-Retorno rumo ao novo mundo.

Para Dionne Brand (2002, p. 18-19), essa “Porta”, “real e metafórica”, tem status de “uma mítica” para pessoas negras descendentes de africanos escravizados e espalhadas pelas Américas. Essa mítica define a ambivalência de nossa existência e de nosso pertencimento que, para ela, está “alojado em uma metáfora” e que nos obriga a “ser um tipo de ficção”. Ainda segundo a autora, “viver na Diáspora Negra é, eu acho, viver como uma ficção – uma criação dos impérios e também uma autocriação. É como ser um ser vivendo dentro e fora de si mesmo”. Ana Pi olha, com a câmera, para os espaços em que reconhece ou constrói seu pertencimento. “E eu grite: acarajé! Me perguntaram: mas você fala iorubá?”, conta com sua voz doce e pausada. A temporalidade estabelecida por sua narração deixa escorrer, para o filme, as camadas dessa identidade-ficção. O suceder de espaços e a menção desordenada a eles monta um mosaicado território-memória. Ana também aponta a câmera para si e para a construção que faz de si nesse lugar. Ao filmar outros corpos que também performam para a câmera ela entra em quadro. “Signature” é a dança mas é também seu gesto no e com o filme.
O artista goiano Dalton Paula, cuja série de pinturas A Cura compõe este catálogo, realizou dois retratos para a já mencionada exposição Histórias Afro-Atlânticas: João de Deus Nascimento e Zeferina. O retrato de João de Deus foi criado sem uma referência visual: imagens dessa figura histórica da resistência negra não existiam. Um dos curadores da exposição, Hélio Menezes, explica que parte da obra de Dalton é inspirada na estética dos ex-votos e “têm uma relação direta, portanto, com uma espécie de cura – os ex-votos têm essa função, de serem deixados nas laterais das igrejas, nos altares, pedindo a cura”.
Em A Cura, Dalton traz corpos negros com referências a territórios de pertencimento, em ações de cura física e simbólica ou ainda de iniciação. Os olhos dos personagens estão fechados, numa possível introspecção e transcendência, num agenciamento de outras presenças para além do visível. João de Deus Nascimento e Zeferina têm os olhos abertos, numa altivez para o presente da ação. Dalton complexifica a relação com a espacialidade e a temporalidade das negruras, numa gama diversa e complementar de potências. Com uma heterogeneidade de auto-representações e de experiências com a negritude, as buscas e invenções nos filmes presentes na seleção aqui comentada parecem apontar para esses gestos – atentos e complexos – de estabelecer resistência e cura pelas imagens, ampliando as fissuras em um modo histórico de narrativas excludentes e de opressão.
Filmes
NoirBLUE: deslocamentos de uma dança. dir.: Ana Pi, 2018. 27 min. https://anazpi.com/noirblue-doc/
Nome de Batismo: Alice. Dir: Tila Chitunda , 2017. 25 min. https://www.looke.com.br/filmes/nome-de-batismo-alice
Maré. Dir: Amaranta Cesar, 2018. 22 min.https://beirasdagua.org.br/item/mare/
Galinhas no Porto. Dir: Caioz e Luís Henrique Leal, 2018. 20 min.https://cargocollective.com/luishenriqueleal/Galinhas-no-Porto-2018
Referências
CESAIRE, Aimé. Discurso sobre a Negritude. Belo Horizonte: Nandyala, 2010
BRAND, Dionne. A map to the door of no return: notes on belonging. Toronto: Vintage Canada, 2001.
HALL, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
LARA, Silvia Hunold. Biografia de Mahommah G. Baquaqua. Revista Brasileira de História, v.8, nº 16,. São Paulo, 1988. p. 269-284.
MARTINS, Carla Ludmila Maia. Sob o risco do gênero: clausuras, rasuras e afetos de um cinema com mulheres. 2015. 285p. Tese (Doutorado em Comunicação Social) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015