* Artigo escrito em parceria com Edileuza Penha de Souza e Ceiça Ferreira
Sou forte, sou guerreira,
Tenho nas veias sangue de ancestrais.
Levo a vida num ritmo de poema-canção,
Mesmo que haja versos assimétricos,
Mesmo que rabisquem, às vezes,
A poesia do meu ser,
Mesmo assim, tenho este mantra em meu coração:
“Nunca me verás caída ao chão”.
Trecho do poema “Ressurgir das cinzas”, de Esmeralda Ribeiro.
É a história de vida, os anseios, as inquietações e principalmente, a postura altiva de uma menina moçambicana que constituem o foco do curta metragem “Phatyma”. Lançado em 2010 e dirigido pelo cineasta brasileiro Luiz Chaves, este filme é resultado de uma parceria entre este diretor e a escritora moçambicana Paulina Chiziane.
Por meio da voz de Phatyma, aliás, desta e de tantos outros femininos que emergem dessa narrativa, é que tal curta nos apresenta em forma e conteúdo uma nova perspectiva para se pensar o olhar eurocêntrico que ainda prevalece sobre a representação das mulheres africanas, suas culturas, valores e visões de mundo no cinema dominante.
Já na sequência inicial, essa personagem assume o lugar de sujeito. A partir das histórias que ouviu, Phatyma narra seu nascimento. Sua voz em off alia-se a uma metáfora visual na qual são destacadas referências femininas, pelas mulheres que apresentam essa nova vida à lua, e pelas sombras de outras mulheres, que cantando e dançando festejam tal acontecimento. Embora não seja mostrados diretamente, podemos perceber a presença dos homens, pelas mãos que tocam os tambores.

Questionando os limites impostos pela subordinação das mulheres numa sociedade patriarcal, a personagem e a escritora Paulina Chiziane se encontram. No ensaio “Eu, mulher…por uma nova visão de mundo“, Chiziane problematiza as desigualdades de gênero que permeiam o grupo cultural a qual pertence.
“Na infância a rapariga brinca à mamã ou a cozinheira, imitando as tarefas da mãe. São momentos muito felizes, os mais felizes da vida da mulher tsonga. Mal vê a primeira menstruação é entregue a marido por vezes velho, polígamo e desdentado. À mulher não são permitidos sonhos nem desejos. A única carreira que lhe é destinada é casar e ter filhos” (CHIZIANE,2013, p.201).
Com as anciãs que Phatyma aprende sobre o que é ser homem e o que é ser mulher. Tal sequência contrasta com as cenas iniciais de seu nascimento, aqui a personagem aparece junto à mãe e à avó, que fazem serviços domésticos. Elas permanecem ali, enquanto marido e filhos saem, vão trabalhar e estudar fora (Fig.03), pois como afirma a protagonista “a mim foi ensinado que tenho que ficar em casa“.

A forma como a narrativa explora a relação de Phatyma com a mãe é significativo do desejo dessa personagem em construir sua própria história. Contudo, não se trata simplesmente de negar o modelo materno, mas reconhecer suas limitações, pois Phaty, se coloca no lugar da mãe, que assim como ela deve ter tido sonhos, mas não pôde seguir trilhar outros caminhos, outros devires.
Em outro momento, sozinha no meio de uma pastagem, Phatyma parece perdida, e os movimentos desordenados da câmera, que gira rapidamente, a enquadra de diversos ângulos confirmam sua confusão mental. Depois ela vais se distanciando da personagem, que aos poucos desaparecem em meio à paisagem (Fig.3), em off ouvimos as frases “que venha o gado”, “que venha o dinheiro”. É como a ajuda de Paulina Chiziane que compreendemos o que elas significam, segundo a escritora.
“Na etnia Tsonga (minha etnia) quando uma rapariga nasce, a família e os amigos saúdam a recém-nascida dizendo: hoyo-hoyo mati (bem vindo a água), atinguene tipondo (que entre o dinheiro), hoyo-hoyo tihomo (bem vindo o gado). O nascimento de uma rapariga significa mais uma força de ajuda a transportar água, mais dinheiro ou gado cobrado pelo lobolo [preço da noiva] “(CHIZIANE, 2013, p.201).

O acesso à educação é sem dúvida uma conquista para Phatyma, e não significa apenas a oportunidade de estudar, mas também de brincar, já que em casa ela afirma não ter tempo para isso. Pelas cenas em que ela aparece brincando com outras meninas, ou recebendo um presente de um menino, percebe-se relações mais flexíveis, bem como uma outra visão sobre as relações de gênero, conforma afirma “gostei daquela aula em que foi dito que os rapazes e raparigas tem os mesmos direitos”.
Embora Phatyma se alegre com essa novidade, o mesmo não acontece com sua mãe e avó. A mãe questiona: “se o homem fizer o trabalho da mulher o que ela fará?” e a menina tenta explicar melhor, dizendo “mas mamã eu não estou a dizer que o rapaz e a rapariga são iguais, estou a dizer que os direitos são iguais“. Tal sequência construída com o uso de sombras revela a tensão entre o ponto de vista da menina e das anciãs (Fig.4), que gesticulam e a orientam como ela deve se comportar com o marido, ressaltam as diferenças entre o que é ensinado na escola e o que se vive em casa; e assim como a força de seu argumento que se dissipa, também a sombra de Phaty, entre a mãe e avó vai gradativamente diminuindo.

Um dos momentos mais significativos desse curta é quando Phatyma se olha no espelho e questiona sua a mãe e avó o porquê de mandarem à escola se não concordam o que o é ensinado. Ao olhar diretamente para a câmera, a personagem interpela também nós espectadoras e espectadores (Fig.5).
Vale ressaltar tal procedimento no filme de ficção, porque segundo Doane (1991, p. 465) “se um personagem olha e fala para a o espectador, isto constitui um reconhecimento de que o personagem é visto é ouvido em um espaço radicalmente diferente, portanto lido como transgressão“.

Ela desafia as normas, e afirma “eu sei que posso mudar, sei que posso mudar, é minha hora de mudar, posso ser moderna sem negar minhas tradições, eu só quero preparar meu presente e aprender com o passado e ter não medo de ser diferente“. Juntamente com tal fala, o uso de closes do rosto de Phatyma, bem como os seus vários reflexos que surgem do espelho parecem ganhar força e fazer com a imagem da mãe e da avô outrora maiores do que ela, voltem ao seu tamanho normal; em alternância com efeitos sobre super closes de seu rosto.
“Fui um presente ao amanhecer e meu futuro depende da força da mulher que sou, depende das decisões que eu tomar pra mim“. Essa fala de Phaty marca um possível recomeço para a personagem. Ela e outra mulher seguram o bebê que ela um dia foi, e a oferecem à lua. “Chamo-me Phaty”, Assim como iniciou a narrativa, essa personagem a finaliza afirmando sua história e identidade, e é capaz de vislumbrar outras perspectivas para seu futuro (Fig. 6).

Articulando a proposta do filme “Phatyma”, com um provérbio de origem africana que diz “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçada continuarão glorificando o caçador“, sem dúvida cabe a nós, historiadoras, comunicadoras, cineastas e escritoras negras o desafio e o estímulo de construir novas e diferentes narrativas, que a partir dos nossos pontos de vista, de nossas vozes sejam capazes de mostrar nossas histórias de lutas, resistências, protagonismos e sonhos.
Veja a seguir o filme:
Referências bibliográficas
CHIZIANE, Paulina. Eu mulher… por uma nova visão do mundo. Abril, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 199-205, 2013.
DOANE, Mary Ann. A voz no cinema: a articulação do corpo no espaço. In: ISMAIL, Xavier (org.) A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Embrafilme/Graal, 1991.
RIBEIRO, Esmeralda. “Ressurgir das cinzas”. In: Cadernos Negros- Poemas Afro-Brasileiros, Vol. 27, São Paulo: Quilombhoje, 2004.
Filmografia
CHIZIANE, Paulina; CHAVES, Luiz. Phatyma. [curta metragem]. Produção de AfricaMakiya Produções, direção de Luiz Chaves. Moçambique, 2010. 09 min.49s. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=NBKbFGxM1-k >. Acesso em: 22 maio. 2014.