
Esta é uma tradução livre de Traces of Ecstasy, uma manifesto do fotógrafo Anglo-Yorubá Rotimi Fani-Kayodé, publicado em 1987, quando o autor contava com 32 anos. Você encontra a primeira parte da tradução aqui.

Traços de ênfase
“Uma consciência histórica têm sido de fundamental importância no desenvolvimento de minha criatividade. A história africana e dos negros têm sido constantemente distorcida. Mesmo na África, minha educação foi dada em inglês, em escolas católicas, como se a língua e a cultura do meu povo, os Yorubá, fossem inadequadas para o desenvolvimento saudável dos jovens. Mas ao explorar a história e civilização Yorubá, eu redescobri e reavaliei partes da minha experiência e entendimento do mundo. Eu vi paralelos entre o meu próprio trabalho e o dos artistas Osogbo que resistiram às subversões culturais do neocolonialismo e que celebravam o rico e secreto mundo de nossos ancestrais.
Permanace verdade, contudo, que as grandes civilizações Yorubá do passado, como muitas outras culturas não-europeias, ainda são enviadas pelos ocidentais à museus de arte e cultura primitivas. A cosmologia Yorubá, comparável em sua complexidade e sutilezas aos mitos filosóficos grego e oriental, é tratada como nada além de uma superstição bizarra que, por milagre, inspirou a criação de alguns dos mais sensíveis e delicados artefatos da história da arte. A arte moderna Yorubá (entre a qual eu situo a minha própria contribuição) tem chegado, muitas vezes, a alcançar altos valores nas galerias de Nova Iorque e Paris. Ela é premiada por seu apelo exótico. De modo similar, as versões modernas das crenças Yorubá carregadas pelos escravos para o novo mundo têm se tornado, na forma de carnaval, mera atração turística. E eu sou inevitavelmente tocado por isso.
Outro aspecto da história – o da sexualidade, por exemplo, tem me afetado profundamente. A história oficial tem negado a validade das relações e experiências eróticas entre os membros do mesmo sexo. Como no campo da política e da economia, “as invencionices” dos historiadores das relações sociais e sexuais foram prontamente amparadas pela Igreja. Mas à despeito de todas as tentativas da Igreja e do Estado em suprimir a homossexualidade, é claro que relações sexuais enriquecedoras entre membros do mesmo sexo sempre existirão. Elas são parte da condição humana, ainda que o conceito de identidade sexual seja uma noção recente.
Há um capítulo sombrio da história europeia que não me foi ensinado na escola. Eu só descobri muito mais tarde que os nazistas criaram as mais extremas formas de homofobia existentes nos tempos modernos e tentaram exterminar homossexuais nos campos de concentração. Isso não veio exatamente como uma surpresa, mas como mais um exemplo da longa tradição europeia da repressão violenta da alteridade. Isso me toca tão de perto quanto o conhecimento de que milhões de meus antepassados foram mortos ou escravizados, a fim de garantir a hegemonia política, econômica e cultural europeia sobre o mundo.
Por esta razão, eu sinto que é essencial resistir a todas as tentativas que desencorajam a expressão de uma identidade. No meu caso, minha identidade foi construída a partir de meu próprio senso de alteridade, seja cultural, racial ou sexual. Os três aspectos não estão separados dentro de mim.
Fotografia é o instrumento pelo qual me sinto mais à vontade para me expressar. É a fotografia, portanto – negra, africana, homossexual – não apenas um instrumento mas uma arma útil caso seja preciso resistir à ataques à minha integridade e à minha existência.
Não é nenhuma surpresa descobrir que o trabalho de alguém é evitado ou ativamente desencorajado pelo Establishment. A burguesia homossexual tem dado mais apoio a este tipo de trabalho – não porque os artistas negros tenham se notabilizado, mas porque a bunda negra vende quase tão bem quanto um pau negro. Como resultado do interesse homossexual, tive diversos portifólios impressos em editoras gay e um livro de nus publicados pela GMP. Houve também alguma atenção dada ao meu trabalho erótico por galerias hétero que recebem financiamento por parte das autoridades locais mais progressistas.
Mas no geral, ambas, galerias e editoras têm se sentido mais seguras com o meu trabalho étnico e devido à tradição liberal clássica, elas vão levar em conta algumas das minhas imagens – aquelas menos abertamente ameaçadoras e ultrajantes. Assim, o negro pode até ser bonito, desde que ele se mantenha dentro de um referencial branco.
Contudo, eu tenho tido as mais desconcertantes respostas ao meu trabalho vindas de certos grupos auto-conclamados vanguarda. Na exposição Misfits na Oval House (que ocorreu para coincidir com a inauguração de uma placa para comemorar o nascimento do Lord Montgomery de Alamein), fui convidado, junto com outros artistas, a remover meu trabalho por ele ter atraído uma publicidade desfavorável. Nós nos recusamos, naturalmente. Infelizmente, a imprensa estava muito ocupada rendendo homenagem ao Monty, então a reputação da Oval House foi salva e nos foi negada uma publicidade gratuita.
Quanto à África, se eu pudesse realizar uma exposição em Lagos, por exemplo, eu suspeito que ocorreriam vários motins. Eu certamente seria acusado de ser um contrabandista de valores ocidentais decadentes e corruptos.
Algumas vezes, porém, eu penso que se eu levar meu trabalho para as áreas rurais, onde a vida está ainda vigorosamente em contato consigo mesma e com suas raízes, a recepção seria mais construtiva. Talvez eles pudessem reconhecer meus deuses da varíola, meus sacerdotes transexuais, minhas imagens de homens negros desejáveis em estado de frenesi ou a tranquilidade da comunhão com o mundo espiritual. Talvez eles tivessem menos medo de se deparar com os mais obscuros segredos obscuros da África, aqueles segredos pelos quais alguns de nós procuram ter acesso à alma.”
Foto de Rotimi Fani-Kayodé por Robert Taylor.