
“Brinquedo de nego forro fugido é abrir roda para mostrar que tudo é caça e caçador”. A frase define muito bem a complexidade da formação e posição social do negro brasileiro, evidenciado na manifestação cultural Nego Fugido, do distrito de Santo Amaro, região do recôncavo baiano. Essa manifestação é inscrita na imagem fílmica do curta-metragem baiano Nego Fugido (2009), de Cláudio Marques e Marília Hughes.
O curta-metragem põe em questão duas posições: a do objeto filmado e a do sujeito que filma. Inicialmente, o casal entra no campo da imagem, a mulher se aproxima e ajusta a câmera, volta para a posição e, então, começam a tocar e cantar, revelando-nos o principal intermediário que nos conecta com a realidade filmada, a câmera.
Mas, o casal que detêm esse aparato e o utilizará para registrar a manifestação cultural “previsivelmente” coloca os sujeitos da manifestação como o “outro”, desconhecido e espetacularizado. Quando o representante do Capitão do Mato, personagem da encenação, interroga a mulher que filma, desestabilizando-a, esse “outro” desconhecido retira-os do espaço da invisibilidade atrás da câmera, rompe com a fronteira do previsível e os expõe, inserindo-os no jogo.
O homem branco entra no jogo da relação com o “outro”, porém, mesmo obtendo os signos de pertencimento daquele “jogo”, pintando a sua pele de preto e passando a pedir esmolas para sua alforria, a sua posição de não pertencente àquela realidade e de ser estrangeiro é evidenciada. Nas falas da comunidade ouviremos: “que escravo braquelo”, “tá doente esse nego”. Logo depois, veremos na imagem emblemática do casal silencioso na margem do rio o homem lavando o rosto.
O curta visivelmente problematiza as posições e se coloca na reflexão de como compreender uma realidade a qual não se pertence, o que nos obriga a rever nosso processo histórico. Suscita questões sobre a complexidade de uma população que toca atabaque e reza ave-maria. Que manifestação é essa que faz questão de relembrar os resquícios escravocratas, que a história oficial e a memória nacional anulam? Questões como essas hoje reverberam em sermos o negro forro e o fugido.
(Este texto foi realizado para a disciplina Crítica Cinematográfica, ministrada pela Professora Cyntia Nogueira, na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, na cidade de Cachoeira)
Assista “Nego Fugido“:
*Larissa Andrade é realizadora do TELA PRETA, movimento de cinema negro que produz obras com a temática racial com diversas perspectivas. Graduanda do curso de Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – Cachoeira/BA. Atuou como bolsista do Projeto de Extensão : Cineclube Mário Gusmão no campo de formação de platéia e circulação (2012-2013) , no qual realizou a Curadoria da Mostra (5x) Cinema Negro , em homenagem ao cineasta Zózimo Bulbul. Participou do Projeto videoclipe do Recôncavo , dirigindo o videoclipe Axé (2012) do grupo de rap Conceito Articulado, o qual recebeu Mensão Honrosa do videoclipe no 3º FestClip – São Paulo/ SP. Atualmente dirige o documentário Lápis de Cor , projeto contemplado pela I Chamada de Curtas Universitários do Canal Futura.